“Ele [produtor] quase me bateu porque eu não estava conseguindo fazer uma cena de pum, pois meu intestino estava preso. Ele jogou as notas de 50 na minha cara, gritou comigo e me largou no motel. Eu sentia o ódio dele por eu não estar seguindo as ordens.”
Para muita gente, esse seria um episódio traumatizante. Mas, durante os anos em que Vanessa Danieli trabalhou como atriz pornô, foi apenas o encerramento de mais um dia de trabalho.
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Não teve um motivo único nem foi do dia para a noite que ela foi impelida a entrar para a pornografia. Uma série de acontecimentos ao longo da vida pavimentaram o caminho até que ela dissesse “sim” para uma proposta de gravar seu primeiro vídeo.
Entre os mais traumáticos estão os vários abusos que ela diz ter sofrido durante a infância e adolescência.
O primeiro deles foi quando ela era criança. “Existiu um abuso aos 5 anos de idade, estupros com 14, 15, 16, 17 e 18 anos, um relacionamento abusivo de três anos que, por fim, acabou me levando à prostituição.
Aí passei a viver em um meio recheado de drogas, bebidas e com zero perspectiva de futuro”, diz.
A virada na vida e na carreira aconteceu no final de 2010, quando Vanessa já trabalhava garota de programa.
Foi uma noite de movimento ruim na boate em que ela fisgava seus clientes.
“Uma das meninas me convidou para fazer pornô. Fui sem consciência e sem pensar na internet, que eu quase não tinha acesso na época.”
Como não tinha recursos para acessar a rede na época, incorreu no erro de acreditar que ela nem as pessoas conhecidas tomassem contato com as filmagens que viria a fazer.
E não era apenas Vanessa que sofria com a falta de equipamentos.
Quando foi atuar pela primeira vez, percebeu que tinha expectativas elevadas demais sobre as câmeras e o profissionalismo da equipe de gravação.
“Cheguei achando que seria algo com glamour e não era nada disso. São homens com câmeras Canon [semiprofissionais] na mão, pagando prostitutas para gravar cenas de sexo.”
Violência nos bastidores
Com a experiência de quem já trabalhava no ramo, Vanessa sabia que eventualmente teria de atuar em cenas fisicamente dolorosas, eticamente condenáveis e até moralmente humilhantes.
Mas ela não estava preparada para o que acontece por trás das câmeras da indústria pornográfica.
“Os abusos começam com cenas em que é feito mais do que o combinado, quando os produtores não dão cópia do contrato ou quando existem cláusulas vitalícias em que ele pode usar sua imagem mesmo depois de morta”, afirma.
Um desses abusos, segundo ela, aconteceu em um dia em que a chamaram para fazer uma entrevista. Diferentemente do que havia sido pré-arranjado com Vanessa, o produtor não queria papo, apenas sexo com a então atriz.
“Eu me neguei, e ele fez um escândalo. Começou a gritar como se isso fosse me coagir a fazer o que ele queria. Eu simplesmente falei: ‘Sem dinheiro, sem sexo’. E fui embora.”
Ela lembra de colegas que foram vítimas desse mesmo homem, mas que não conseguiram fugir.
A ficha caiu, mas era tarde demais
Durante os anos em que viveu de sexo, a ex-atriz conta que ficava em uma “bolha” e não convivia muito com pessoas que não transitavam por esse mundo.
Ela só se deu conta de onde havia se metido quando caiu a ficha de que seu conteúdo estava disponível na internet para sempre. “Não tinha mais volta, eu estava querendo viver e ser normal, mas não conseguia, por conta de toda essa condenação. Sair da linha invisível da marginalidade e voltar para a sociedade, depois de tudo o que vi e vivi, é muito difícil.
Eu sentia medo em tudo: medo de andar na rua, pegar transporte público, de pegar o Uber, medo do julgamento do pessoal da faculdade, do estágio, das novas pessoas ao meu redor.”
Quando decidiu encerrar a carreira no pornô, Vanessa começou a cursar a faculdade de marketing em 2016. Ela ia às aulas disfarçada, para não correr o risco de ser reconhecida pelos colegas. “Colocava uma touca e um óculos bem grosso, meu marido me levava e me buscava todos os dias, e, quando não podia, eu voltava de Uber. Deixei de sair com meus colegas para beber por não querer dar abertura pra ninguém.”
Ela repete a tática até hoje quando usa aplicativos de transporte. “No Uber eu uso o mesmo disfarce e cubro minhas tatuagens. Tenho que deixar claro que tenho marido, falar minha idade, porque grande parte dos motoristas mexe comigo. Fico repetindo: ‘Ai, porque meu marido…’ sempre que preciso falar alguma coisa.” E, quando ouve algo que considera desagradável, Vanessa não deixa barato. “Esses dias um motorista começou a falar um monte de bobagem, de passageiros que entraram no carro dele e começaram a tirar a roupa, querendo dar a entender alguma coisa. Comecei a falar de feminismo para ele ficar quieto.”
Mesmo depois de ter abandonado a pornografia, os assédios continuaram. Vanessa conta que, por gostar da cultura geek, frequentava muitos eventos, entre eles de cosplay – caracterizada como personagens. Num desses eventos, um funcionário do local a reconheceu e causou constrangimentos. “Ele ficou gritando dizendo que já tinha feito várias ‘homenagens’ [masturbação] para mim. Depois, chamou alguns amigos para ficarem me rodeando, tentando passar a mão em mim”, desabafa. Essa não foi a única vez que ela diz ter sido “atacada” por seu passado. Diversas vezes, nessas convenções de cultura pop, a ex-atriz foi abordada mais de 5 vezes pela mesma pessoa querendo tirar foto com ela para conseguir apalpá-la.
Com tantos traumas acumulados, Vanessa conta que estava decidida a se matar se tivesse que continuar trabalhando com sexo. E, em uma última tentativa de mudar de ideia, começou um canal no YouTube. “Achei que seria uma saída, guardei um dinheiro para passar alguns meses me dedicando a gravar vídeos pro meu canal, sem precisar ir à boate ou voltar a gravar os filmes”, explica. Mesmo assim, muita gente ainda sabia de seu passado, e fazia questão de lembrá-la a todo momento. “Agora que exponho minhas experiências de forma mais negativa, os traumas, e os distúrbios que tive em geral, sempre tem quem fale mal de mim.”
Quando percebeu que sua vida nunca mais seria a mesma, Vanessa seu marido, um aliado eficaz na hora de esquecer pensamentos suicidas. “Eu contei a ele que não iria sobreviver se tivesse que voltar a trabalhar com sexo, ele me incentivou a voltar a estudar. Logo eu consegui um estágio na área de marketing e comecei uma nova vida, o canal no YouTube se tornou algo secundário, já que eu estava evoluindo com o marketing de influência, me formando na faculdade e me casando.”
Pornografia traumatiza também quem a consome
Apesar de ter passado anos da sua vida ganhando dinheiro com o corpo, Vanessa diz que o pornô reforça alguns estereótipos anatômicos e acaba desfocando o que de fato importa no sexo. “Vejo muitos homens reclamarem do tamanho do pênis, que gostariam de ter um maior. Mas não vejo os homens interessados na localização do clitóris. Deveriam, pois, afinal, a porcentagem de mulheres que gozam por penetração é muito menor do que as mulheres que gozam com estímulos clitorianos, e o tamanho não interfere no prazer, desde que eles saibam o que estão fazendo.”
“[A pornografia] também interfere em como os homens veem os corpos das mulheres, como se aqueles fossem os ideais e os diferentes fossem anormais. As mulheres reais não são como as moças nos vídeos, e isso não vai mudar. Isso faz os homens buscarem cada vez mais o superficial, e não o natural.”
Hoje, Vanessa lida com inúmeros traumas causados por sua breve passagem pela indústria do sexo. Ela precisa de remédios e terapia para conseguir viver normalmente e é assombrada todos os dias pelas escolhas que fez ainda jovem. “Não importa a empresa em que eu trabalhe ou os cursos que eu faça, tem sempre alguém que me reconhece ou me descobre. Vão me pesquisar e vão me ver do pior jeito possível, na pior fase da minha vida, e eu não posso fazer nada para impedir.”
“A sociedade como um todo incentiva as mulheres a se sexualizarem e venderem essa sexualização, para depois chamá-las de vadias. Quem compra o conteúdo é o mesmo que precisa dessa submissão para estar e se sentir no controle. A mensagem que eu gostaria de passar é que vocês não condenem quem trabalha com sexo, isso é discriminação. Ninguém sabe o que essas pessoas passam. Eu não estou aqui para proibir ninguém de assistir, produzir ou atuar em pornografia. Estou aqui para dividir minha história e minhas experiências com vocês para conscientizar.”
Vanessa se “aposentou” da pornografia no dia 6 de novembro de 2016. “Desde então tenho uma real escolha de vida, uma em que não me sinto humilhada e machucada. Nessa vida tenho perspectiva de futuro e posso andar para frente.”
Com a palavra, uma sexóloga
“O que vemos, de forma geral, são homens buscando múltiplas parcerias para a satisfação sexual, trazendo para a intimidade comportamentos como o de submeter a mulher a fantasias que muitas vezes não fazem sentido e não dão prazer para ela; o ato sexual focado na penetração ‘britadeira’ e no seu orgasmo; não se preocupam com as preliminares e com o prazer da outra parte, e, o requinte de violência, como por exemplo tapas na bunda e a forçação de barra para o sexo anal. Esses são claros exemplos de como o conteúdo pornográfico afeta o comportamento masculino”, diz a sexóloga Andréia Paro.
Segundo ela, para as mulheres, a pornografia também é extremamente nociva do ponto de vista psicológico. “Traz questões como a comparação dos corpos com o das atrizes, como vulvas pequenas, rosadas e depiladas [o Brasil é líder mundial em cirurgias íntimas e, mais especificamente, no procedimento chamado ninfoplastia ou labioplastia, que consiste na redução dos lábios vaginais]; outra questão é a tal da submissão e o ‘dever’ de dar prazer ao homem, de realizar as fantasias sexuais dele. Também não podemos esquecer de falar sobre os orgasmos fingidos, uma vez que o sexo falocêntrico não dá chance para o prazer feminino.”
Andreia deixa claro, assim como Vanessa, que a pornografia é como uma droga: vicia. E cada vez mais o consumidor precisa de conteúdos diferentes e pesados para se satisfazer. “Diversos estudos mostraram que, ao assistir esse tipo de conteúdo, o sistema de recompensa do cérebro é ativado; ou seja, assim como as drogas, o pornô gera a liberação de hormônios do prazer e, quanto mais eu consumo, mais eu quero e preciso consumir para ter a sensação de bem-estar que busco”, afirma a sexóloga.
A compulsão também pode trazer pensamentos obsessivos por sexo, fazendo com que o “viciado” não consiga fazer atividades comuns do dia a dia sem abrir um site adulto. “Além disso, precisamos falar da disfunção erétil cada vez mais presentes entre jovens. Médicos especialistas relatam que a população jovem masculina, devido ao consumo precoce e desmedido desse conteúdo, não consegue mais sustentar uma ereção, por ter acabado com o apetite sexual”, acrescenta Andreia.